sábado, 3 de novembro de 2018

Gotas caem

Há tristeza
E há beleza

Cada átomo
Que se desfaz
É um ritmo
Que incendeia
Os últimos desejos

Janelas encobrem
As moléculas do céu
E um véu escorre
Sobre as paredes da alma

Chove e faz sol
E o girassol promete
A vida íntima
De um rouxinol

Gotas caem
Luzes se apagam
E a cama dança
No ritmo do dia

A noite quase não nasce
E quem não vem
Passou e ficou

Hóspedes na casa
Crianças no almoço
O cachorro e seu osso
E o namorado se disfarça

Água doce na ceia
Uma semente de simpatias
Um só pé de meia
E a lua inteira

Devagarzinho se apagam
Todas as estrelas
E tudo retorna
À casa, à natureza

Ilusões nos porões
Quadros de areia
A madrugada ao leste
E o tambor da aldeia

Pureza original
Poesia final
Uma palavra que corta
O sol central

As batidas do coração
São os sinos do agreste
E a última canção
É o amor celeste

Ticiana Vasconcelos Silva



quinta-feira, 5 de julho de 2018

Partida

Fui buscar em palavras o destino de minha vida
E elas me falaram que ao encontrá-las eu saberia viver
Como uma régua que encontra consolo em uma linha
Eu poderia ver que os desenhos mais nítidos não são os da realidade
Mas sim os que consagraram no papel a sua intimidade
Eu quis ler os objetos e quis me opor às visões contrárias
Não para ser comum, mas para implodir as verdades extraordinárias
Ficar com os restos, me juntar aos desertos que construí em torno de mim
Mas as minhas atitudes não mudariam em um instante
Pois quanto mais eu escrevia, mais eu ficava distante
E não poderia encontrar a vida em sua fala mais potente
Que diz sempre para caminhar com o sol entre os dentes
Para mostrar que a dor não é mais forte que um amigo ausente
Todas as vezes que me vi em torno das palavras
Que me cobriam de desejos e me concederam a paz de um amor
Eu não pude me obstar de ter vontade de partir sem me despedir
Por que aqui eu deixei uma marca d'água
Em almas que se vestiram de olhos a observar metáforas
Substituí o caos por gotas de lágrimas que refletiram o vazio dos significados
E a existência se transformou em um grande pássaro
Que ocupou meus pensamentos até absorver toda sua racionalidade
Por isso, uso as palavras para me petrificar
Pois eu sei que algo em mim é puro e escuro
Já que não pude ser a vida sentida
Que eu seja a alma que vai sem partida

Ticiana Vasconcelos Silva


Roberto José da Silva

quarta-feira, 9 de maio de 2018

Ode ao tempo


Peço, tempo, que venha como uma manhã ensolarada
E seja uma canção sobre aquela estrada
Que se percorre na escuridão e que, no fim,
Nos leva à rendição

Peço, tempo, que, no meio do caos,
Você seja apenas uma medida sobre a vida
E que não condicione as minhas estranhezas
Para que tudo seja sóbrio e lúcido

Peço, tempo, que acolha as inquietações sobre o tempo
Para que eu não permaneça a mesma
Para que eu não jogue com a própria vida
E para que eu siga, sem me perturbar

Peço, tempo, que seja a última descoberta
Que se revele como uma folha que cai com coragem
E se desprende para deixar de ser
Árvore e ser, apenas, leveza

Ticiana Vasconcelos Silva

Jessalyn Brooks



sábado, 3 de março de 2018

O último cântico

Eles me chamam
E vejo estrelas me conduzindo
Por aquele caminho invisível
Indizível e solitário
Nada me afetará
Nem o caos, nem a luz, nem a escuridão
Quero ir para longe, perto de quem me ofereceu a vida, o sol e as estrelas
Não sei mais dizer o que sinto
Só sei que vou
E não quero voltar
Abismos entram, um mar de nuvens me rodeia
A água me cobre e o sol deixa um vazio em meu peito
Escrevo a última canção
Para não me segurar ao condenar-me por este último ato
Sem dor, arbitrário, simples
Como uma flecha que voa em direção ao infinito
E atinge o peito de um sonhador
Sussurrarei o amor brando em pesadelos
Ganharei a vida iluminada
Mergulharei em ondas vorazes
E te encontrarei
Ali, serena, singela, altiva
A flor do meio-dia
O amor que nunca verão

Ticiana Vasconcelos Silva




Hilma af Klint







sábado, 4 de novembro de 2017

No peito arde a mais inglória dor
Sangrando palavras mórbidas
Corroendo os dentes imóveis
Sussurrando sombras e mistérios

No peito vive a mais espantosa flor

Como se de mantos velhos se cobrisse
Como se abrisse e sumisse
Como se na primavera se abrumasse

Espantos do dia, luzes da noite

Solenes curvas que sobrecarregam o que ainda está por vir
Porvir sem constatações
Cantos sem objeções

No sangue a matéria inconstante

Permanecendo vítima do ritmo moribundo do mundo
Sonhos estranhos
Tamanho o desassossego
Desenho raso de um mar sem cor

O verbo rasgado e usado

Sem dar movimento, estagnado
Urso hibernando
Poema sem vigor

E na pele amaldiçoada

A cinza esparramada
Os olhos trêmulos
O gesto do desamor

Ticiana Vasconcelos Silva

José Suassuna

sábado, 29 de julho de 2017

Navio

Tudo parece-me estranho
Tamanho é o desejo de estar a sós
Sem aqueles nós que naufragaram
E me ataram à vontade de correr veloz
Fugir do algoz que inventei pelo medo
Pelo erro, pelo pelo que caiu após
A partida breve sobre a neve
Cuja pele escorre em meus lençóis

Súbitos anseios permeiam o que ficou em nós
E calada na madrugada acordada, enlaçada pelos anzóis
Deste navio que ainda permanece inerte no fundo de corais azuis
Recordo-me hoje com olhos marejados, cansados de vida e de vontades senis
Mesmo que a idade fale mais dos beijos que eu não quis
Mesmo que a mão ainda guarde a marca que nasce sem fim
Pois permanece como um bálsamo da coragem que eu nunca fiz
E, assim, faço do meu castelo de areia a barragem de você em mim

Ticiana Vasconcelos Silva